Comida de vegetariano é arroz com feijão ou feijão com arroz?

Talvez a maior preocupação das pessoas que retiram as carnes da alimentação seja suprir as necessidades diárias de proteínas (veja outros nutrientes de maior atenção da alimentação vegetariana aqui e aqui).

Provavelmente você já deve ter lido por aí que a combinação de um cereal, como o arroz, com uma leguminosa, como o feijão, fornece uma proteína tão completa em relação à quantidade de seus aminoácidos, quanto a proteína da carne, dos laticínios ou dos ovos. Isso porque os cereais são ricos no aminoácido metionina e pobres em lisina, enquanto as leguminosas são pobres em metionina e ricas em lisina.

Assim, combinar os dois grupos de alimentos é muito positivo, e não precisa, necessariamente, que isso ocorra na mesma refeição. A exceção fica por conta da soja, que possui todos os aminoácidos essenciais em quantidades equilibradas, e da quinoa e do amaranto, que são pseudocereais com a mesma característica.

Que boa notícia, não? Quer dizer que basta comer arroz com feijão ou trocar a carne pela soja, pela quinoa e pelo amaranto, que está tudo certo?

Não! [Lá vem a Natália com o raio problematizador da nutrição vegetariana!!!]

O principal segredo é variar os alimentos, combinando diversos tipos de cereais [todos os tipos de arroz, milho (preferir o orgânico), aveia, trigo, centeio, cevada, cevadinha, painço, quinoa, amaranto, trigo sarraceno], com diversos tipos de leguminosas [veja abaixo]. Dessa forma, evitamos uma dieta monótona, e obtemos diversos nutrientes de um maior número de alimentos possível, além de ser mais prazeroso.

Temos que considerar também a quantidade de feijão ou de outras leguminosas ao longo do dia, assim como as formas de preparo e consumo para otimizar a absorção dos nutrientes, e aquele probleminha chato que muitas pessoas apresentam com o consumo de leguminosas – os gases!

Vem comigo que eu vou detalhar mais a seguir.

 

VARIEDADES DE LEGUMINOSAS

  • Todos os tipos de feijão (ex.: branco, preto, fradinho, vermelho, rajado, fradinho, bolinha, jalo, roxo, moyashi, rosinha, guandu)
  • Grão de bico
  • Lentilhas (ex.: marrom, amarela, vermelha, francesa)
  • Ervilhas frescas e secas (somente os grãos)
  • Favas e tremoços
  • Soja e edamame (grão de soja verde)
  • Amendoim (Amendoim? Sim, embora normalmente consumimos o amendoim cru ou torrado como as castanhas, o amendoim é uma leguminosa. Contudo, devido ao seu aumentado teor de gorduras insaturadas, na prática o consideramos como oleaginosa.)

 

QUANTO DE LEGUMINOSAS DEVO CONSUMIR PARA SUBSTITUIR A CARNE?

A penúltima versão do Guia Alimentar para a População Brasileira (2008, p. 189) recomendava, diariamente, 1 porção de carnes ou ovos, e 1 porção de leguminosas. Isso equivaleria, por exemplo, a 1 bife de carne bovina grelhado (cerca de 60 a 80 g) e uma concha de feijão (contendo metade grão e metade caldo), respectivamente.

Para exemplificar uma substituição desse bife grelhado por leguminosas, mantendo a quantidade de proteínas que ele ofereceria, seria necessário consumir, ao longo do dia, por exemplo: 6 colheres de sopa de feijão no almoço e 6 no jantar (ou de outra leguminosa) + 2 colheres de pasta de grão de bico sobre algum pão, torrada ou tapioca no café da manhã + 1 colher de sopa de amendoim no lanche da tarde (Dados do IBGE extraídos do aplicativo Dietbox).

Agora você entendeu o que o título dessa newsletter quis dizer?

Comida de vegetariano é feijão com arroz, e não arroz com feijão, dado que são necessárias mais porções de leguminosas ao longo do dia para suprir as necessidades de proteínas ao substituir a carne.

Obviamente que essa substituição também altera outros nutrientes e o valor energético das refeições. Por isso, cada pessoa pode necessitar de uma quantidade menor ou maior, conforme seu peso, altura, idade, nível de atividade física, tipo de dieta (se inclui laticínios e ovos ou não), entre outras questões que devem ser avaliadas individualmente por um nutricionista.

 

OTIMIZANDO OS NUTRIENTES DAS LEGUMINOSAS E REDUZINDO A FORMAÇÃO DE GASES

Uma leguminosa é uma semente e, como tal, carrega em si importantes substâncias para o crescimento e desenvolvimento da planta. Algumas dessas substâncias são carboidratos, proteínas, lipídeos, vitaminas e minerais, o que fazem das leguminosas alimentos tão nutritivos.

Contudo, as sementes precisam de mecanismos para permanecerem viáveis mesmo quando não houver condições ótimas para germinar. Esses mecanismos envolvem substâncias como ácido fítico (reserva de fosfato da planta), taninos, inibidores de enzimas digestivas e carboidratos de reserva (amido, rafinose, estaquiose, verbascose).

O ácido fítico e os taninos são capazes de se ligar a alguns minerais como o zinco e o ferro, reduzindo sua absorção no intestino. Já os inibidores de enzimas digestivas, principalmente de tripsina, impedem a quebra das proteínas em aminoácidos, dificultando, também, a absorção desses nutrientes. Por esses motivos, tais substâncias são comumente chamadas de fatores antinutricionais.

Alguns dos carboidratos de reserva como a rafinose, a estaquiose e a verbascose causam desconforto e flatulência em algumas pessoas, devido à falta de atividade da enzima alfa-galactosidase no trato digestivo humano para digeri-los. Sem essa enzima, tais carboidratos sofrem fermentação pelas bactérias da flora intestinal, gerando dióxido de carbono, hidrogênio e metano, o que pode ocasionar um grande desconforto e dor abdominal em pessoas mais sensíveis.

Boa parte dos problemas com as leguminosas são resolvidos pelo processo de maceração, que consiste em deixar as leguminosas de molho em água fria por 12 a 16 horas, descartando-se a água, enxaguando bem os grãos e acrescentando mais água potável para o cozimento. Com esse procedimento simples é possível reduzir cerca de 85% dos fitatos, 88% dos taninos, 26,8% de amido, 25% de rafinose, 24,5% de estaquiose e 41,7% de verbacose (veja mais aqui). Consequentemente, a digestão das leguminosas e a absorção dos nutrientes é otimizada.

Os processos de germinação dos grãos e fermentação também podem reduzir expressivamente o teor das substâncias mencionadas (veja mais aqui). Alguns estudos mostram, ainda, que o teor de alguns nutrientes de grãos germinados ou fermentados aumenta significativamente. Alimentos como o tofu, o tempeh e o missô, são exemplos desses processamentos naturais da soja, que favorecem o valor nutricional e a digestibilidade das proteínas (prefira sempre as versões orgânicas). Contudo, há de considerar outras variáveis, como o tempo de germinação ou fermentação, variedade da leguminosa, clima, umidade, entre outros aspectos, o que dificulta a quantificação e a comparação segura desse teor em outros grãos.

Empiricamente, algumas outras experiências também já foram descritas como favoráveis, principalmente no que diz respeito ao desconforto com os gases. Algumas pessoas preferem cozinhar as leguminosas em panela aberta, ao invés de cozinhar na panela de pressão, removendo a espuma que se forma na superfície. Há indícios, também, de que adicionar folhas de louro, hortelã, sementes de erva doce ou alga kombu pode auxiliar, pois possuem ação carminativa (anti-gases).

Minha sugestão é que você observe o que funciona melhor para você, porque esta é uma questão bastante particular, uma vez que nem todo mundo sente desconfortos com todas as leguminosas. Mas sempre que for cozinhá-las, faça o processo de maceração descrito acima, principalmente porque isso melhora muito o aproveitamento dos nutrientes.

 

MAIS BENEFÍCIOS DAS LEGUMINOSAS

Além de serem fonte de proteínas, as leguminosas ainda se caracterizam por possuir quantidades importantes de ferro, cálcio, zinco, magnésio.

Os minerais cálcio e ferro presentes nas leguminosas se distribuem em quantidades equilibradas e, portanto, não se observa uma competição relevante pela absorção intestinal de ambos. Contudo, para as pessoas que consomem laticínios, os quais apresentam grandes quantidades de cálcio, o ideal é evitar o consumo desses alimentos até 2 horas antes ou depois das refeições contendo leguminosas, pois grandes quantidades de cálcio podem reduzir a absorção intestinal de ferro ao competirem pelo mesmo local de absorção. É muito comum indivíduos ovolactovegetarianos apresentarem deficiência de ferro porque substituem a carne por preparações à base de queijos ou por ingerirem muitas sobremesas lácteas.

Por outro lado, como eu já mencionei aqui, a ingestão de uma fruta rica em vitamina C na mesma refeição em que as leguminosas são consumidas pode dobrar, e até triplicar, a absorção desse ferro.

As leguminosas também são ricas em fibras do tipo solúvel, capazes de produzir géis viscosos quando em contato com a água das secreções digestivas ou dos próprios alimentos. Esses géis tornam o processo digestivo mais vagaroso, oferecendo saciedade por mais tempo, conferindo maior volume e melhor consistência das fezes, e promovendo a lenta absorção dos carboidratos, evitando picos de glicose e insulina no sangue.

As fibras solúveis também podem ser utilizadas como fonte de energia pelas bactérias da microflora intestinal, cujo processo resulta na formação de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), principalmente acetato, propionato e butirato. Os AGCC reduzem o pH intestinal tornando o meio levemente mais ácido, o que tem sido descrito como positivo para diversos processos, como para a inibição da proliferação de microrganismos patogênicos e da formação de produtos de degradação tóxicos, e para favorecer a absorção intestinal de cálcio, interferindo positivamente na saúde óssea. O butirato, em si, participa ainda de processos de recuperação das células intestinais e modulação do sistema imune local, tendo demonstrado efeitos positivos na prevenção de doenças inflamatórias intestinais e de neoplasias de cólon.

Diversos estudos vêm apontando os benefícios das fibras solúveis na prevenção e no tratamento de condições crônicas, como doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, obesidade, obstipação intestinal e diabetes. Veja mais aqui.
Na próxima newsletter eu vou trazer uma seleção de receitas com leguminosas e apresentar a lentilha mais gostosa que eu já comi, com um toquezinho de limão para ressaltar o sabor (mais uma dica da minha amiga e comadre Fê Canna).

Até breve! Seguimos!

Natália Utikava
Nutricionista
CRN/SP 40.387


P.S.: Esse conteúdo é meramente informativo e não substitui o atendimento nutricional individualizado. Dependendo da fase da vida, ou de alguma condição clínica particular são necessários alguns ajustes, e mesmo suplementação, que somente um profissional especializado poderá orientar. Se você deseja adequar sua alimentação conforme sua rotina, fase da vida e necessidades, entre em contato para agendar uma consulta.